Os corvos e o rancor

Vicente Serejo
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Enquanto os sinos seculares de Notre Dame outra vez reacendiam a vida dos parisienses, e as suas badaladas mergulhavam nas águas velhas do rio Sena, renovando a fé, de Vancouver, no Canadá, chegava aos olhos e ouvidos do mundo a estranha descoberta. O texto é de Thomas Fuller, publicado na Folha de S.Paulo: os corvos, como os seres humanos, guardam rancor. Pior: não só guardam: transmitem às novas gerações. E com uma vantagem: não temem os castigos de Deus.
Já se sabia da inteligência dos corvos. Dos pássaros como nos seres humanos. Está provado, faz algum tempo, que imitam a fala e a voz e aprendem a contar até quatro. São tão estranhamente parecidos com os humanos que também se reúnem, num ritual fúnebre, como se fosse um velório, quando morre um deles. Com grande memória, e uma percepção aguda que tudo fixa, escreve Fuller, são até capazes, acreditem, de “identificar e lembrar de rostos, mesmo entre multidões”.
Aliás, essa capacidade de não esquecer as mágoas e, em alguns, nunca ser capaz de perdoá-las, tem muito do rancor racional. Hoje, a visão teológica moderna admite que o perdão faz bem a quem perdoa. Cabe ao perdoado tentar curar as feridas que ficaram na carne e na alma de cada um. O perdão não precisa de nada. De ninguém para ser exercido em plenitude humana e espiritual. Mesmo que a norma, como bem adverte Leandro Karnal, estimule sempre “o desejo de infração”.
Nada andou mais pelo mundo, das civilizações intelectuais mais elevadas aos mais pobres destinos humanos, do que o grande poema ‘O Corvo’, de Edgar Allan Poe. De Fernando Pessoa a Machado de Assis, de Ivo Barroso a Alexei Bueno, venceu rios e visões múltiplas, como se espera de um grande poema. Da sua gênese mais íntima às referências, das traduções às interpretações, sempre advertindo contra o velho perigo da mediocridade, um inimigo a espreitar em cada esquina.
Numa manhã de domingo, o professor John Warzluff atravessou o campus da Universidade de Washington, “com a máscara de um Ogro”. Estudioso da “interação entre humanos e corvos”, ao ser indagado por quanto tempo os corvos guardam rancor, respondeu: “Cerca de 17 anos”. E explicou: capturou com rede sete corvos, e soltou. Os corvos passaram a grasnar agressivamente todas as vezes que aparecia alguém com uma máscara de Ogro”. Seriam os rancores guardados?
Como se não bastasse, o rancor dos corvos, na tradução do poeta Fernando Pessoa, se manifesta até à meia-noite, se diante deles, lento e triste, bater à porta na noite infinita, “e de uma paz profunda e maldita”. Os corvos não esquecem aqueles que, de alguma forma, lhe foram hostis e agressivos, mesmo ingratos, quando recebem um gesto de desconhecer a sua fome. Como alguns humanos, os corvos não gostam de perdoar. Mas, às vezes, esquecem o rancor. Depois de anos…
PALCO
LUTA – Fontes ligadas ao ex-senador José Agripino estão convencidas: ele não vai abrir mão da candidatura de Alysson Bezerra ao governo. A única hipótese é se o próprio Alysson não aceitar.
DÍVIDA – O governo estadual entrou o novo ano devendo as parcelas de novembro e dezembro do Registro do Patrimônio Vivo. E não há prazo para pagar este mês de janeiro que vai acabando.
BOM – A Liga contra o Câncer deverá instalar até final do um novo acelerador nuclear, adquirido através emenda parlamentar. Com o padrão tecnológico dos maiores centros oncológicos do país.
DEBATE – A tributação das receitas das igrejas no Brasil deve ser um dos temas em debate no Congresso Nacional na legislatura que começa, de verdade, depois do carnaval. Meados de março.
CHOQUE – De um lado, os que acusam a isenção de beneficiar, desproporcionalmente, as igrejas evangélicas; e, do outro, os que invocam a Constituição de 1891 e liberdade de religião no Brasil.
GRANA – Quando a coisa é matemática não há como desmentir, segundo números da Receita Federal: a renda das igrejas em 2023 chegou, oficialmente, a 24,2% bilhões, 0,5% do PIB nacional.
POESIA – Nos olhos do mundo, com o selo do Gajeiro Curió, o livro ‘40 Poemas’, de Abelardo Fonseca: “Vida / de tantos enganos / anos de tantos maridos, idos em um passado em fogo ardente”.
RETRATO – De Nino, o filósofo melancólico do Beco da Lama, depois de uma cachaça aliviada por uma seriguela vermelha e doce: “Os oportunistas sabem ocupar o poder. É assim desde Roma”.
CAMARIM
FORTUNA – São ao todo dezesseis textos críticos para dezesseis nomes, os selecionados para a edição especial da revista Cult pelos críticos Manuel da Costa Pinto e Luís Costa, mas todos publicados pela própria revista. Uma grande síntese das visões literárias ao longo de trinta anos.
QUEM – Foram selecionados: Cruz e Souza, Cecília Meireles, Carlos Drummond, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, João Cabral, Orides Fontela, Paulo Leminski, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Hilda Hilst, Augusto de Campos, Sebastião Uchoa, Chico Alvin, Armando Freitas Filho.
MUNHOZ – A revelação no elenco de textos críticos da Cult é o artigo de Caetano Galindo sobre o poeta Felipe Munhoz. Ele escreve: “Versifica como poucos, rima como poucos, tem um ouvido infalível e uma capacidade de invenção invejável”. É autor, entre outros, do livro ‘Identidades”.
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